Uma Jornada Atemporal a Veneza: Análise Completa de "Quando o Coração Floresce" (Summertime, 1955)
O Florescer da Alma em Meio à Serenidade Veneziana
"Quando o Coração Floresce" (Summertime), de 1955, é muito mais do que um simples romance de férias; é uma meditação poética sobre a solidão, a esperança e a coragem de se abrir ao amor, mesmo que ele venha envolto em complexidades. Dirigido pelo visionário David Lean – o mesmo por trás de épicos como Lawrence da Arábia e Doutor Jivago – e ancorado pela performance magistral de Katharine Hepburn, este filme se destaca por sua beleza visual e profundidade emocional, capturando a essência da lendária cidade de Veneza.
O filme acompanha Jane Hudson, uma solteirona de meia-idade de Ohio, que economizou a vida toda para realizar o sonho de viajar sozinha para Veneza. A princípio, ela é uma observadora cautelosa da felicidade alheia, sentindo-se a "forasteira" em meio aos casais e à efervescência da cidade. Sua vida muda ao conhecer Renato de Rossi, um charmoso comerciante italiano. A história, que se desenrola entre gôndolas e praças históricas, questiona se a felicidade temporária é preferível à eterna solidão.
Detalhes de Produção: O Desafio de Filmar em Locação
David Lean e a Ousadia da Filmagem Externa
O diretor David Lean, antes conhecido por filmes de estúdio, tomou a decisão ousada de rodar Summertime inteiramente em locações reais em Veneza. Esta escolha, na época, era incomum e tecnicamente desafiadora, mas crucial para a imersão da história. Lean queria que a cidade fosse um personagem, um catalisador das emoções de Jane.
Ano de Produção: 1955.
Direção: David Lean.
Roteiro: David Lean e H. E. Bates, adaptando a peça teatral "The Time of the Cuckoo" de Arthur Laurents. O filme simplificou e suavizou alguns aspectos da peça original, tornando a personagem principal mais vulnerável e romântica.
Financiamento e Custos: As filmagens ocorreram no verão de 1954 com um orçamento estimado em US$ 1,1 milhão. Há relatos históricos de que a equipe teve que pagar indenizações a comerciantes locais que se sentiram prejudicados pelo bloqueio das ruas e pela presença massiva do set de filmagem, o que aumentou significativamente os custos de produção.
Fotografia: O Olhar de Jack Hildyard
A cinematografia ficou a cargo de Jack Hildyard, que capturou a luz e as cores vibrantes de Veneza, utilizando o recém-popular formato Technicolor. O uso extensivo de filmagens em exteriores confere ao filme um realismo e uma beleza lírica que seriam impossíveis em um estúdio. As cenas refletem o estado de espírito de Jane: desde as imagens solitárias nos canais a princípio, até a efervescência calorosa do encontro com Renato.

Elenco e Personagens
O filme é um verdadeiro tour de force de sua protagonista.
| Ator/Atriz | Personagem | Curiosidades |
| Katharine Hepburn | Jane Hudson | Uma performance inesquecível que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz. Ela incorpora perfeitamente a solteirona reservada, mas cheia de vida. |
| Rossano Brazzi | Renato de Rossi | O charmoso galã italiano, que equilibra o charme e a complexidade de um homem com laços familiares. Brazzi era um ator internacionalmente popular na época. |
| Isa Miranda | Signora Fiorini | A dona da pensão onde Jane se hospeda, uma personagem que oferece um contraponto de sabedoria e resignação à jornada de Jane. |
| Darren McGavin | Eddie Yaeger | Um turista americano que, junto com sua esposa Phyl, representa o "casal feliz" que Jane observa, adicionando outra camada à sua solidão inicial. |
Um Momento de Sacrifício por Katharine Hepburn
Uma das cenas mais icônicas e dolorosas de se assistir é quando Jane, distraída com a visão de Renato, cai no Canal de Veneza. Para garantir a autenticidade e a visão de Lean, Hepburn realizou a cena ela mesma. Infelizmente, a água do Grande Canal, na época (e ainda hoje), não era higienizada. Hepburn contraiu uma grave infecção ocular que a afetou por anos, um preço alto pago pela dedicação à sua arte.
Figurino e Cenografia: A Cor e a Atmosfera de Veneza
O Figurino de Jane: Reflexo da Transformação
O figurino de Jane Hudson é sutilmente revelador. No início, ela veste roupas mais recatadas e cores neutras, refletindo sua natureza reservada e cautelosa. À medida que se abre para o amor e para a cidade, suas roupas se tornam mais leves, com cores que se harmonizam com o cenário veneziano, simbolizando o "florescer do coração" do título.
A Cenografia Natural: Veneza como Estrela
O maior elemento de cenografia do filme é a própria Veneza. Lean e Hildyard utilizaram a beleza natural e a decadência romântica da cidade.
Piazza San Marco (Praça de São Marcos): Cenário de momentos cruciais, onde Jane compra sua câmera e observa a dança dos casais, enfatizando sua solidão.
O Grande Canal: Onde ocorre o famoso "acidente" de Hepburn.
Ponte de Rialto e Locais Escondidos: O filme evitou os cartões postais óbvios, explorando vielas, pequenos canais (rielli) e cafés autênticos (como o Florian, um café histórico), oferecendo uma visão mais íntima e menos turística de Veneza.
A Paleta de Cores: A saturação do Technicolor captura os tons ocres dos edifícios e o azul profundo da água, transformando a tela em uma pintura viva.
A Alma Musical de Alessandro Cicognini
A trilha sonora composta por Alessandro Cicognini é essencial para estabelecer a atmosfera romântica e melancólica do filme. Cicognini, um prolífico compositor italiano, criou melodias que se entrelaçam com o som das gôndolas e o murmúrio dos canais, realçando a sensação de deslumbramento e introspecção de Jane.
A música não é grandiosa, como nos épicos de Lean posteriores, mas sim íntima e atmosférica, pontuando a emoção sutil da história:
Tema Principal: Transmite uma melancolia doce, a sensação agridoce de uma oportunidade de vida e amor que pode ser breve.
Sons da Cidade: Lean fez questão de incorporar os sons ambientes, como a sirene da polícia ou os sinos das igrejas, fundindo a trilha musical com a paisagem sonora autêntica de Veneza.
As Cidades: Uma Ode a Veneza
A cidade de Veneza é o coração do filme. "Quando o Coração Floresce" é amplamente considerado uma das mais belas cartas de amor cinematográficas à cidade.
[Sugestão de Foto/Visual: Uma montagem mostrando o Grande Canal e um close de Jane na Piazza San Marco]
Ao contrário de muitas produções, que usam Veneza como mero pano de fundo, Lean fez dela um espelho para a alma da protagonista. O contraste entre a agitação dos turistas e a quietude dos cantos escondidos da cidade reflete o conflito interno de Jane entre a busca por um grande romance e o medo da vulnerabilidade.
A locação real de Veneza (e não cenários de estúdio) permite que o público sinta a umidade, o cheiro de maresia e a textura dos edifícios antigos. A atmosfera de férias de verão, com o calor e a promessa de algo novo, é palpável e serve como o cenário perfeito para o florescer tardio da protagonista.
Legado e Análise Temática
"Quando o Coração Floresce" é um marco por sua realização técnica em locação e por sua profundidade psicológica. O filme foi indicado a dois Oscars, incluindo o de Melhor Atriz para Katharine Hepburn e Melhor Diretor para David Lean.
O tema central é a escolha entre o sonho idealizado e a realidade imperfeita do amor. Jane precisa decidir se o romance de férias com um homem casado é um erro a ser evitado ou a única chance de amor e paixão que sua vida lhe oferecerá, mesmo que temporariamente. O final agridoce e realista de Lean é um testamento à maturidade da obra, sugerindo que às vezes, a coragem de ir embora é tão vital quanto a coragem de ficar.
O filme continua a ser um clássico de culto, amado por sua sensibilidade e por sua imortalização de Veneza sob o olhar de um dos maiores diretores do cinema.